As eleições antecipadas em Portugal
Pela terceira vez em quatro anos, foram convocadas eleições legislativas em Portugal, desta vez após a rejeição de uma moção de confiança apresentada pelo governo de direita de Montenegro (PSD-CDS). Esta é mais uma prova da instabilidade e da crise institucional em que a direita e o centro liberais têm afundado o país, mas em particular das manobras desesperadas do primeiro-ministro para ocultar os seus negócios privados. A razão de fundo para a apresentação da moção de confiança – que nunca seria aprovada por um parlamento polarizado, no qual o governo estava em minoria – não foi política, foi, simplesmente, uma questão pessoal: o primeiro-ministro foi ameaçado com a realização de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para averiguar se, de facto, enquanto esteve no exercício das suas funções governativas manteve em funcionamento uma empresa, que prestava serviços a partir da sua própria casa, e recebeu pagamentos de diferentes clientes, incluindo clientes interessados em obter licenças de exploração de casinos. Para evitar a CPI, Montenegro montou o circo da moção de confiança, que foi obviamente rejeitada. Como consequência, o governo teve de demitir-se e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, convocou eleições legislativas antecipadas para o próximo dia 18 de maio.
Um breve histórico das eleições de 2024
Como devem se lembrar, a intervenção do FMI, BCE e Comissão Europeia no contexto da crise da balança de pagamentos de 2011 implicou um violento plano de austeridade em Portugal, que cortou salários e pensões e impôs a recessão ao país. Os enormes protestos contra o governo que aplicou a austeridade, um governo de coligação da direita tradicional (PSD-CDS), levaram-nos a uma mudança de maré nas eleições de 2015: o Partido Socialista (PS), apesar de não ter ganho as eleições, conseguiu formar governo, graças ao acordo de apoio parlamentar negociado com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português (PCP). Foi o tempo da chamada Geringonça. Embora esse acordo só impusesse ação comum em alguns assuntos e excluísse outros (como políticas militares e europeias), ele resultou num aumento de salários e pensões, em melhorias no setor da educação, no preço e no acesso aos transportes públicos e noutros direitos sociais. Em 2019, os resultados eleitorais confirmaram a popularidade da Geringonça: o PS ganhou as eleições e o Bloco de Esquerda e o PCP desceram ligeiramente. No entanto, o Partido Socialista não esteve disposto a manter o seu compromisso com os partidos de esquerda e provocou uma crise política, sob o pretexto da dificuldade em chegar a acordo sobre o Orçamento para 2022, dificuldade essa que teve que ver com a rejeição, por parte do governo, de um compromisso para salvar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). O SNS foi sendo degradado ao longo dos anos pelos sucessivos governos de alternância (entre PSD e PS) que impuseram sucessivas concessões a empresas privadas e provocaram a sangria de pessoal do SNS – muitos enfermeiros e médicos emigraram, por causa dos baixos salários, e os hospitais privados contrataram parte do pessoal do serviço público. No entanto, o governo do PS opôs-se à proposta de uma nova Lei de Bases da Saúde, um novo quadro legal para a recuperação da política de saúde pública, apresentada por António Arnaut (fundador e ex-ministro do Partido Socialista) e João Semedo (dirigente do Bloco de Esquerda). Por essa razão, o Bloco de Esquerda rejeitou o Orçamento de 2022, já que ele não respondia às necessidades do país. Em todo o caso, o PS conseguiu transformar o conflito sobre o Orçamento de 2022 numa crise, que resultou em novas eleições (antecipadas), nas quais obteve a maioria absoluta. A operação do PS resultou e, por isso, de 2022 a 2024, o PS governou com o controlo total do parlamento e usou-o para rejeitar as propostas dos partidos de esquerda, regressando às medidas tradicionais de redução do investimento público e das restrições financeiras para cumprir as regras europeias sobre défice e despesa públicos. Apesar da maioria absoluta, seguiu-se a desagregação do governo e foram convocadas novas eleições antecipadas para março de 2024, depois de o primeiro-ministro, António Costa, ter apresentado a sua demissão em consequência de um escândalo de alegada corrupção que, embora não o envolvendo pessoalmente, implicava o seu chefe de gabinete. Esta eleição conduziu a um novo governo constituído pela coligação dos dois partidos tradicionais da direita (PSD- CDS).
O governo de Montenegro
As eleições legislativas de março de 2024 mudaram o mapa eleitoral do país de duas maneiras principais. Primeiro, a aliança entre o PSD, o maior partido de direita, e um menor, o CDS, obteve 28,8% dos votos e acabou por constituir o maior grupo parlamentar (80 deputados em 230), sendo o seu líder – Montenegro – designado primeiro-ministro. No entanto, a sua vitória foi estreita: os 28% só lhe davam a vantagem de dois deputados, já que o PS tinha conseguido eleger 78. A segunda mudança foi o grande salto eleitoral da extrema-direita (Chega). Em 2022, o Chega tinha tido 7,2% dos votos, conseguindo eleger 12 deputados. Em 2024, obteve 18% dos votos e elegeu 50 deputados. Tornou-se uma força decisiva e, embora o primeiro-ministro Montenegro rejeitasse qualquer aliança formal, sabia que poderia contar com esses votos para qualquer política que favorecesse os interesses especulativos. Nessas eleições, o Bloco de Esquerda recuperou ligeiramente (para 4,4%; 5 deputados) e os outros dois partidos de esquerda, PCP e Livre, obtiveram 3,2% dos votos e quatro assentos parlamentares cada um.
Como já dito, o governo de Montenegro foi derrotado um ano após a sua eleição e a sua queda provocou as próximas eleições. Esta situação resulta da vontade expressa e reiterada do primeiro-ministro em esconder a sua responsabilidade num flagrante conflito legal (e ético), já que não é apenas suposto um membro do governo não desenvolver os seus negócios particulares enquanto ocupa o cargo; está, de facto, legalmente impedido de fazê-lo. A crise não aconteceu por dificuldades de cumprimento da agenda do governo, que teve todas as condições para governar e cumprir o seu programa. Apesar de o Orçamento do governo corporizar a estratégia económica e financeira agressiva da direita, de, com ele, Portugal passar a ser o país da União Europeia que menos se compromete com o investimento público, o Partido Socialista absteve-se na votação e, por isso, bastaram os votos da coligação do governo para que o Orçamento fosse aprovado.
Noutros casos, a convergência com a extrema-direita deu ao governo os votos suficientes para ter uma maioria confortável no parlamento em importantes mudanças legislativas. Em questões políticas centrais, como a imigração, a direita alinhou com a retórica e as propostas da extrema-direita, disputando até essa agenda, como no caso da Lei de Bases da Saúde, cuja revisão foi feita em conjunto pelo governo e a extrema-direita e resultou na discriminação no impedimento das pessoas migrantes em situação irregular acederem ao SNS. Esta mudança legislativa impede, por exemplo, que mulheres e gestantes tenham acesso a cuidados de saúde, nomeadamente direitos sexuais e reprodutivos – contraceção, acompanhamento na gravidez e puerpério ou interrupção da gravidez –, direitos protegidos por convenções internacionais.
Carta aberta contra a alteração à Lei de Bases da Saúde
Cerca de 840 profissionais de saúde subscreveram uma carta aberta em que afirmam que se recusarão a cumprir a decisão do governo, que consideram discriminatória, ao impor novas limitações no acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) a estrangeiros não residentes ou em situação irregular e admitiram recorrer à desobediência civil. Acusando o governo de promover desigualdades e dificultar o combate a doenças transmissíveis, os subscritores da Carta Aberta comprometeram-se a continuar a prestar cuidados a todas as pessoas que procurem os serviços públicos de saúde.
A continuação da degradação dos serviços públicos – estrangulamento do Serviço Nacional de Saúde, crise no setor da educação, onde continuam a faltar professores -, uma política fiscal que alivia as grandes empresas, mas carrega nos impostos ao consumo e o mantra da regulação da habitação pelas leis de mercado e do turismo como desígnio nacional – eram o rosto do Orçamento do governo que o Partido Socialista viabilizou, criando as condições para o governo governar. Estavam, portanto, reunidas todas as condições institucionais para o governo governar e, por isso, a crise que surge e nos atira para novas eleições antecipadas não é de natureza política, mas o resultado da promiscuidade dos negócios privados de um primeiro-ministro em funções e da sua tentativa desesperada de impedir o seu escrutínio democrático.
No entanto, apesar de o governo ter condições políticas para governar, a erosão da sua base de apoio estava em curso. A crise imobiliária que vivemos é o melhor exemplo de sucesso das políticas liberais agressivas e os seus resultados têm impacto negativo na vida esmagadora maioria da população. À medida que o turismo se tornou uma indústria dominante, forçou decisões políticas. A disneylização das cidades implicou não só modificações nas regras do trabalho, estendendo ainda mais a precariedade, mas também na natureza dos investimentos, seleção das empresas vencedoras e processos dominantes de acumulação de capital, provocando a expulsão das populações das cidades e a transformação dos bairros e do comércio de proximidade. Em dez anos, os preços das casas mais que duplicaram, o que representa um ritmo de crescimento quatro vezes superior em relação ao rendimento médio salarial. Em Lisboa e no Porto, os preços das casas são, atualmente, mais altos do que em Madrid ou Berlim, tanto para arrendar quanto para comprar, sendo que o salário mínimo nacional em Portugal é 870 euros e em Espanha e Alemanha é 1184 e 2222 euros, respetivamente. No centro de Lisboa, 75% das casas estão capturadas pelo Airbnb ou equivalente; em algumas avenidas e ruas principais, restam apenas alguns moradores locais, o que significa que as pessoas foram expulsas e que é impossível aos jovens sonharem habitar uma casa no centro. E esta é a origem da tensão social e dos protestos populares mais significativos dos últimos anos. Vários movimentos sociais e iniciativas populares se têm organizado em defesa do direito à habitação. A crise da habitação está presente nas reivindicações dos vários movimentos sociais – do feminista ao antirracista. A crise da habitação é o maior problema do país e todo o ativismo social está mobilizado neste combate contra a selvajaria dos mercados e as políticas neoliberais.
Referendo ao alojamento local
Em 2022, em Lisboa, nasceu em uma iniciativa popular em torno da proposta de um referendo sobre alojamento local, com o objetivo de o restringir – Movimento Referendo pela Habitação (MRH). Após o processo de recolha de assinaturas, a proposta foi levada à Assembleia Municipal de Lisboa e aprovada em dezembro de 2024 (com os votos favoráveis do PS, Bloco de Esquerda, Livre, PAN e PEV) e enviada para o Tribunal Constitucional (TC), que a recusou, levantando um conjunto de objeções. O MRH decidiu insistir na proposta e, por isso, resolvidas as questões que tinham motivado a recusa do TC, a proposta voltou à Assembleia Municipal. No entanto, aconteceu um volte-face na Assembleia Municipal de Lisboa: o PS, que tinha aprovado a proposta de referendo, propôs que a proposta reformulada do MRH não fosse sequer discutida pela Assembleia, recolhendo o apoio da de toda a direita. Neste momento, vive-se, pois, um impasse: a proposta de referendo está pronta para seguir novamente para aprovação do TC, mas a Assembleia Municipal recusou-se a discuti-la e aprová-la. A proximidade das eleições autárquicas será, provavelmente, o argumento usado de ora em diante, para não respaldar uma proposta do movimento popular.
Violência policial
Odair Moniz, imigrante cabo-verdiano a viver há mais de vinte anos em Portugal, foi fatalmente baleado por um agente da polícia no bairro da Cova da Moura, na periferia de Lisboa, a 21 de outubro de 2024. A versão posta a circular pela polícia foi contestada por várias associações, que exigiram uma investigação séria e isenta, considerando estar em causa uma cultura de impunidade nas polícias, num contexto político de exacerbação do discurso de ódio contra as comunidades negras. Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, partido de extrema-direita, defendeu que “se a polícia disparasse a matar, o país estava mais na ordem”, enquanto André Ventura, o líder, se referiu à vítima como um “bandido” e defendeu a condecoração do polícia que disparou. O agente que disparou está suspenso e acusado de homicídio pelo Ministério Público.
A manifestação “Sem Justiça não há Paz”, contra a violência policial nos bairros e em homenagem a Odair Moniz, convocada pela Vida Justa para 26 de outubro, foi massiva, ao contrário da da extrema-direita em “defesa da polícia”. No entanto, é necessário sublinhar que a extrema-direita não só disputa a rua (como já tinha acontecido), mas fá-lo agora em confronto direto (contramanifestação).
Violência social
Portugal, março de 2025. Ana Paula é cuidadora de idosos e ganha o salário mínimo. Tem três filhas e estava grávida. Como deixou de conseguir pagar a renda, mudou-se com as filhas para uma barraca que foi demolida à sua frente poucos dias antes de ter o bebé. Na maternidade, foi avisada de que se não tivesse uma casa aprovada pelos serviços o seu bebé lhe seria retirado.
Há milhares de pessoas a viver em barracas e na rua por não conseguirem pagar uma renda. Muitas têm crianças e, mesmo estando a trabalhar, temem ficar sem os filhos por não terem uma habitação digna e com condições. A ameaça de retirada da guarda dos filhos abrange centenas de famílias e não apenas quem vive em barracas ou na rua. Acontece o mesmo a quem esteja a ser despejado de uma casa arrendada ou a ocupar uma habitação de forma ilegal.
Vida Justa – Menos renda, mais transportes, mais salário
O movimento Vida Justa nasceu em 2023, ainda durante a maioria absoluta do Partido Socialista, e tem sido catalisador e organizador de uma parte importante do descontentamento popular com as políticas de habitação, o custo de vida e a violência policial. Nasceu num bairro da periferia de Lisboa e tem conseguido projetar a voz das comunidades mais esquecidas e discriminadas, seja porque são pobres, imigrantes ou racializadas. As suas mobilizações – Marcha dos Bairros (março/abril 2025), Sem Justiça não há Paz (outubro de 2024), Vida Justa (outubro de 2023) – e formas de organização têm contribuído para mudar a natureza do movimento social, pela capacidade que têm tido em mobilizar e capacitar novos atores e sujeitos políticos, diversificando os lugares de fala e as pessoas que tomam a palavra. É a voz da periferia em discurso direto, sem intermediação, e isso tem resultado em mais força social e política e em muita aprendizagem sobre modos de fazer e construir relações políticas e de solidariedade.
O que está em causa nas eleições de 2025
Estas eleições são estranhas, mas, simultaneamente desafiantes. São umas eleições indesejadas pela população, que elegeu um governo há apenas um ano, e que tem pela frente um calendário eleitoral exigente: eleições autárquicas em setembro/outubro de 2025 e eleições presidenciais em janeiro de (2026). São, no entanto, as primeiras eleições nacionais depois do regresso à Casa Branca de Trump e dos oligarcas e da devastação e erosão da democracia que está em curso a nível global. São as primeiras eleições em cenário de militarização e rearmamento da Europa, escolha esta que se imporá e terá repercussões nos orçamentos nacionais.
As eleições representarão um choque de alternativas diferentes. Para o governo cessante, trata-se simplesmente de uma tentativa de convocar um plebiscito sobre a personalidade do primeiro-ministro e de salvar a sua posição política e partidária. É muito improvável que tenha sucesso. Para a extrema-direita, esta é uma nova oportunidade para impor a sua presença no governo, em aliança com os partidos da direita tradicionais. Isto não é inédito: Mark Rutte, o novo e extravagante secretário-geral da NATO, terminou a sua carreira nos Países Baixos empurrando o seu partido liberal para uma aliança governamental sob a liderança da extrema-direita. No entanto, para o Chega este é um mau momento: vários dos seus deputados e outras figuras de destaque foram acusados de crimes extraordinários, como pedofilia, roubo, violação e violência doméstica. O acervo é impressionante e, mesmo que o caso Trump prove que os neofascistas conseguem proteger-se contra as investigações, manipulando os seus eleitores e levando-os a imaginar e acreditar que todas as alegações de crimes são produto de uma justiça capturada e de uma imprensa persecutória, o alargamento da base deste partido, a acontecer, gerará novos perigos de corrupção e criminalidade, mas também de capacidade para os reconhecer como tal. Em Portugal, um ano de presença audível da extrema-direita no parlamento foi suficiente para percebermos como rapidamente se degrada a democracia e como o inimaginável se normaliza.
Para o PS, sob a sua nova liderança, esta é a oportunidade de recuperar dos danos sofridos com a sua própria maioria absoluta, embora isso ainda crie dificuldades: pedir votos para uma nova política de habitação e saúde não pode esconder o facto de que o partido dispôs, recentemente, de uma maioria absoluta para poder responder e resolver os problemas, mas, na verdade, não o fez. Nas políticas que mais impacto têm na vida das pessoas, o PS fez parte do agravamento dos problemas e não da sua solução.
Para as forças de esquerda, o desafio é imenso: lutar por uma maior representatividade, que permita criar uma vaga de esperança e de luta popular. O momento político é exigente e requer capacidade de reinvenção: da política e do modo como construímos e comunicamos as nossas propostas e as enraizamos socialmente. As sondagens têm-se revelado, em Portugal, más conselheiras e, por isso, recomenda a prudência e a inteligência que não dependamos delas para pensarmos e construirmos a resposta e a campanha. A responsabilidade da esquerda é imensa e os ventos não nos são propriamente favoráveis. É, preciso, pois, olhar para estas eleições com a urgência de fazer diferente, exatamente porque estamos a responder a um país diferente. Limitar legalmente o valor das rendas, respeitar quem trabalha e taxar os ricos podem ser eixos de disputa eleitoral e catalisadores da força popular. Uma esquerda que se apresente a estas eleições sem perceber a sua exigência, como se estas fossem apenas mais umas eleições, provavelmente, está condenada a definhar. É, pois, preciso juntar forças, interpretar o país e as mudanças e ensaiar uma forma nova de mobilizar e resgatar a esperança.
Andrea Peniche é ativista feminista, membro do coletivo A Coletiva, que participa na organização a Greve Feminista Internacional em Portugal. Militante do Bloco de Esquerda. Escreve, com frequência, para várias publicações como autora e coautora sobre feminismo e filosofia política. Instagram: @a_coletiva_feminismos