Comício em BragaRafael Medeiros
Comício em Braga
Rafael Medeiros

Era uma vez um país…

Andrea Peniche

Domingo foi dia de eleições legislativas antecipadas em Portugal, umas eleições convocadas na sequência da apresentação e rejeição de uma moção de confiança ao governo de direita de Montenegro (PSD-CDS). A razão de fundo desta moção de confiança teve que ver com a idoneidade legal e ética do primeiro-ministro, que foi apanhado enredado numa teia de interesses e favorecimentos: Montenegro foi ameaçado com a realização de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para averiguar se, de facto, no exercício das suas funções governativas, manteve em funcionamento uma empresa sediada na sua própria casa e se, através dela, recebeu pagamentos de empresas. Em resumo, a queda do governo não teve motivações políticas, mas assentou antes num conflito legal e ético. O que os resultados das eleições de domingo nos mostram é que a falta de compromissos com a lei e a ética não são, em termos eleitorais, razões suficientes para censurar governantes e/ou deputados.

Os resultados

  PSD/CDS

(AD)

PS CHEGA IL Livre PCP/PEV Bloco PAN
direita tradicional e direita conservadora social-democracia extrema-direita liberais esquerda esquerda esquerda animalista
Legislativas 2024 28%

77 MP

28%

78 MP

18.1%

50 MP

4.9%

8 MP

3.2%

4MP

3.2%

4 MP

4.4%

5 MP

2%

1 MP

Legislativas 2025 32.1%

86 MP

23.4%

58 MP

22.6%

58 MP

5.5%

9 MP

4.2%

6 MP

3%

3 MP

2%

1 MP

1.4%

1 MP

Parlamento Europeu EPP S&D Patriots for Europe Renew Europe X The Left

 

The Left

 

X

 

No momento em que escrevo este texto, os resultados eleitorais ainda são provisórios, porque falta contar os votos dos círculos eleitorais da emigração (Europa e Fora da Europa) e atribuir quatro mandatos. Muito provavelmente, estes resultados terão um forte impacto no resultado global eleitoral, não apenas do ponto de vista simbólico, mas também, e sobretudo, do ponto de vista das condições concretas da vida democrática no país. Se a tradição se mantiver, o Chega (extrema-direita) elegerá, pelo menos, mais dois deputados, o que o transformará no segundo partido mais votado (à frente do Partido Socialista), logo, líder da oposição. Este cenário não é uma hipótese meramente teórica, é a realidade mais provável, já que há um ano três destes quatro mandatos foram para a direita (1 para o PSD; 2 para o Chega). Acresce que basta que um desses quatro mandatos que estão por atribuir seja para um dos partidos de direita para que esta consiga a maioria parlamentar de dois terços que lhe permitirá nomear para o Tribunal Constitucional e órgãos que regem a magistratura e o Ministério Público e também, se assim o entender, alterar a Constituição da República.

O triunfo da direita

Ontem, a direita triunfou em Portugal. Apesar de toda a direita ter crescido, os resultados não podem ser lidos da mesma forma.

A coligação de governo (AD – Aliança Democrática), que resulta da coligação entre o (ainda) maior partido da direita portuguesa (PSD) e um pequeno partido da direita conservadora (CDS), venceu as eleições, mas o seu crescimento eleitoral não foi espetacular.

Os resultados da Iniciativa Liberal (IL), que durante toda a campanha eleitoral se apresentou e ofereceu como garantia de governabilidade, também cresceu, mas não o suficiente para conseguir determinar ou condicionar a AD. A AD precisa da IL, mas os deputados e deputadas da IL não são suficientes para garantirem uma maioria parlamentar. A direita amiga de Milei cresce em Portugal, mas fica aquém dos seus objetivos: não tem poder para condicionar, nem será parte do governo.

A direita que verdadeiramente cresceu e venceu foi a extrema-direita, o Chega. Reforçou-se em número de votos e de mandatos parlamentares, colocando o país à beira do abismo democrático. Montenegro, o anterior e simultaneamente futuro primeiro-ministro, garantiu, no mandato passado, que não governaria com a extrema-direita. Renovou esse compromisso durante esta campanha eleitoral. No entanto, apesar de o ter cumprido, fê-lo à custa da disputa da agenda da extrema-direita, chamando-a a si, e, nesse movimento, radicalizou o seu próprio partido, contribuindo extraordinariamente para a normalização fascista em curso. Por exemplo, durante o anterior mandato, em conjunto com o Chega, o governo alterou a Lei de Bases da Saúde, que passou a limitar e impedir o acesso aos serviços públicos de saúde a pessoas migrantes. A questão da imigração é, porventura, o exemplo mais cristalino sobre este processo de radicalização em curso da direita. Durante a campanha eleitoral, o governo ainda em funções, anunciou o seu plano de deportação de imigrantes, numa manobra evidente de disputa pelo eleitorado da extrema-direita. Sabemos que na sua agenda está também a sanha de fazer recuar vários direitos sociais, culturais, políticos e económicos. Esta vitória das direitas é, pois, uma declaração de guerra aos movimentos sociais emancipatórios e às conquistas do Portugal democrático. Trabalhadoras e trabalhadores, feministas, pobres, minorias étnicas e sexuais, pessoas migrantes, pessoas com deficiência, todas e todos estamos na mira das direitas.

O Chega foi fundado em 2019 e tem tido um crescimento extraordinário. Em seis anos, cresceu de 1.3% para 23%. Como noutros países, veio dar voz a um país que sabíamos que existia, mas que vivia escondido, com vergonha e sem expressão eleitoral. Tudo isso mudou e, hoje, a casa da democracia albergará 58 deputados e deputadas fascistas. E se, antes, o Chega implorava por um convite para ir para o governo, hoje o seu horizonte alargou-se e a extrema-direita já sonha em governar sozinha ou em ser o motor de um governo de direita radical.

Este processo de fascização não é novidade. Assistimos, um pouco por toda a Europa, a processos semelhantes. No entanto, continua a ser difícil compreender como é que um partido atravessado por contradições, assente na bazófia populista e na mentira, marcado por escândalos contínuos – deputados acusados e condenados por diversos crimes extraordinários, como violência doméstica, abuso sexual de menores, roubo de malas no aeroporto – cresce em número de votos e em mandatos parlamentares. Há um país capturado pela extrema-direita que precisamos compreender e resgatar, porque esse país zangado tem razões para o estar. Descobrir como substituir o ódio como resposta pela solidariedade é uma das tarefas difíceis que a esquerda tem entre mãos. 

A hecatombe da esquerda

Somados, os mandatos dos partidos de esquerda (amplamente considerada – PS, BE, PCP, Livre, PAN) rondam os 30% do parlamento saído destas eleições. À exceção do Livre, todos os partidos de esquerda desceram, apesar de a descida mais acentuada ter sido a do Bloco de Esquerda.

A responsabilidade do Partido Socialista

O Partido Socialista sofreu ontem uma pesadíssima derrota (o seu pior resultado eleitoral desde 1987), que resultou já na demissão do seu secretário-geral (Pedro Nuno Santos). É importante tentar perceber a trajetória que aqui o conduziu. Em 2015, numas eleições legislativas marcadas pelo empobrecimento geral da população imposto pela troika (FMI, CE e BCE) ao país, o Partido Socialista, apesar de não ter ganhado as eleições, conseguiu formar governo, graças ao acordo de apoio parlamentar negociado com o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP). Foi o tempo da chamada Geringonça. Esse acordo, embora só impusesse ação comum em alguns assuntos e excluísse outros, resultou num aumento de salários e pensões e na conquista e alargamento de outros direitos sociais. Nas eleições de 2019, os resultados confirmaram a popularidade da Geringonça: o PS ganhou as eleições e o Bloco de Esquerda e o PCP desceram ligeiramente. No entanto, o Partido Socialista não quis manter o seu compromisso com os partidos de esquerda e decidiu governar sozinho, conduzindo o país a uma nova crise e às eleições de 2022, que ganhou com maioria absoluta. De 2022 a 2024, o PS governou com maioria absoluta e usou-a para rejeitar as propostas dos partidos de esquerda, regressando às medidas tradicionais de redução do investimento público e das restrições financeiras para cumprir as regras europeias sobre défice e despesa públicos. Apesar da maioria absoluta, seguiu-se a desagregação do governo e foram convocadas novas eleições antecipadas para 2024, que resultaram no regresso da direita ao poder (PSD/CDS) e no reforço da extrema-direita (de 12 para 50 deputados e deputadas). Durante dois anos, o PS pôde tudo e fez nada, por isso, nestas eleições, não teve condições de se apresentar – nem ao centro, nem à esquerda – como alternativa. Acresce que em questões fundamentais, como a habitação, as propostas do PS foram coincidentes com as da direita. O PS não apresentou nenhuma medida para resolver no imediato a crise da habitação, recusando-se a secundar a proposta do Bloco de Esquerda de imposição de tetos às rendas, aproximando-se, ao invés, da proposta da direita baseada na construção de habitação num futuro sem data marcada e em medidas ancoradas em benefícios fiscais que já provaram ser irrelevantes, inconsequentes e inúteis no combate a esta crise. Apesar disso, o PS não teve vergonha de apelar ao voto útil da esquerda, um pedido a troco de nada, ancorado apenas na chantagem e na imposição do medo como argumento. O PS falhou ao país e falhou à esquerda.

Esquerda social e esquerda eleitoral: um paradoxo

As campanhas da CDU (coligação do PCP com o PEV – Partido Ecologista “Os Verdes”) e do PAN foram relativamente idênticas a anteriores, não trazendo grande novidade. Pelo contrário, o Bloco de Esquerda partiu para esta campanha com abordagens novas quer ao programa, quer ao eleitorado, baseado no pressuposto de que se os tempos mudaram a forma como os enfrentamos deve mudar também. Tendo por base a análise da experiência do Die Linke, o Bloco de Esquerda construiu uma campanha diferente, baseada no contacto direto com as pessoas (porta a porta), substituindo os clássicos comícios por festas-convívio e investindo os seus militantes históricos na disputa eleitoral. Contra si teve a pressão do tempo, a impossibilidade de maturar todas estas transformações, porque assim o calendário eleitoral o impôs. Apesar de o resultado eleitoral do Bloco ter sido uma hecatombe, a sua campanha foi mobilizadora e, por isso, creio que da aprendizagem resultante dessa experiência nascerá uma renovada forma de militância e de ativismo.

O único partido de esquerda que cresceu significativamente nas últimas duas eleições foi o Livre. Os seus resultados merecem atenção, porque nos colocam perante um debate que, necessariamente, atravessará a esquerda.

O Livre tem cerca de 11 anos e surgiu, construiu-se e constrói-se em torno do seu líder, Rui Tavares, um respeitado historiador que começou o seu percurso político público como candidato independente nas listas do Bloco de Esquerda às eleições Europeias de 2009. Foi eleito eurodeputado, mas rompeu, em 2011, com o Bloco de Esquerda, não devolvendo o mandato ao programa que o elegeu, mantendo-se, por conseguinte, em funções como eurodeputado independente. A rutura com o Bloco implicou também a sua mudança de bancada europarlamentar – do GUE/NGL para os Verdes Europeus (Verdes/ALE). Apesar de o Livre não ter nenhum eurodeputado, faz parte dessa família política e tem representado em Portugal as suas posições, nomeadamente algumas bastante polémicas como a sobre os conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente.

O pendor militarista do partido de Rui Tavares foi uma marca do seu programa eleitoral, apesar de essa escolha ser absolutamente contraditória com a sua proclamação de partido ecologista, a menos que a transição climática que advoga se baseie exclusivamente nos comportamentos individuais privados. O seu programa eleitoral propunha claramente o aumento do investimento em defesa e segurança e o rearmamento e reforço da capacidade militar europeia.

Curiosamente, se analisarmos o percurso do Livre e do Chega conseguimos estabelecer um paralelismo formal entre ambos. São dois partidos que nascem, crescem e se constroem em torno de um homem e, um à direita, outro à esquerda, têm tido ambos uma estratégia semelhante de entrada no poder: o Chega oferece-se ao PSD e o Livre oferece-se ao PS. A campanha do Livre foi toda ela baseada nisso, como, aliás, já tinha sido a anterior. E nenhum dos dois partidos alguma vez esclareceu sob que compromissos estaria disponível para integrar o governo dos partidos que escolheram para chegar ao poder. Apesar de estarem nos antípodas quanto ao seu espectro político, a sua estratégia tem sido semelhante.

Mas o Livre cresceu e o resto da esquerda não. O que explica que uma esquerda urbana, de classe média e pouco ou nada enraizada socialmente tenha conseguido mobilizar até ao voto eleitores e eleitoras de esquerda? O que explica que os partidos com enraizamento social e político – nos sindicatos e nos movimentos sociais – tenham emagrecido e o partido das proclamações e do poder simbólico tenha crescido? Este será, certamente, um debate que vai ocupar a esquerda nos próximos tempos.

 

O futuro: “Por cada grunho, um punho!

A necessidade de estabilidade com que a direita chantageou o país, apesar do seu crescimento, não é tangível. A coligação da AD (PSD/CDS) não conseguiu maioria absoluta e o seu parceiro mais evidente, a IL, não é suficiente para garantir a maioria parlamentar. Acresce que o Chega, que se mostrou sempre disponível para casar com a Carochinha AD, apesar do cordão sanitário imposto por Montenegro, neste momento, deixou de estar interessado nesse casamento, porque o resultado das eleições lhe permite sonhar chegar ao governo pelo próprio pé. Não sabemos como resolverá o PS a sua crise, que líder escolherá e que estratégia gizará: o bloco central é uma possibilidade, dada a base social de apoio do partido e o peso da derrota eleitoral sob uma estratégia de recusa de acordos com a direita. Caso o PS, apesar da derrota, mantenha essa estratégia, a estabilidade parlamentar vai, no imediato, ser forjada com entendimentos à direita, o que nos permite antever um cenário de aceleração da selvajaria económica, de ataque aos serviços públicos e ao Estado social, de privatização do que sobra de setores estratégicos da economia e, possivelmente, de extensão a outros setores sociais e institucionais. Mas se isto são previsões, uma coisa podemos já tomar como certa: as vidas mais vulneráveis estão sob ataque. A vida vai ficar muito mais difícil para os trabalhadores e as trabalhadoras, seja nos novos setores precarizados, como as plataformas digitais, seja nos setores tradicionais – o PSD prometeu, durante a campanha, mexer na Lei da Greve -, para as mulheres, as pessoas LGBTQIA+, as comunidades ciganas, as pessoas com deficiência, as e os imigrantes, as e os pobres, em suma, para todas as pessoas que não tiveram o “mérito” de nascer perfeitinhas, na família certa, com a cor de pele adequada e a orientação sexual canónica e também para todas aquelas que se recusam a ser formatadas num qualquer estereótipo.

A responsabilidade da esquerda é, por isso, imensa, mas isso não nos deve limitar nem assustar. Lembremo-nos da nossa história, do nosso património, lembremo-nos de onde vimos. À esquerda, a política sempre se fez com militância e entrega. E, apesar da presença da esquerda no parlamento ter sofrido um grande revés, neste país a esquerda continua viva, militante e combativa.

Era bom que a esquerda conversasse e se entendesse, que pensasse conjuntamente, que fizesse alianças em torno de questões concretas e cerrasse fileiras. Isso exige maturidade, empenho e respeito, três condições perfeitamente ao alcance da esquerda comprometida com as lutas sociais.

Termino com uma nota pessoal. Quando Bolsonaro ganhou as eleições no Brasil, em 2018, toda a esquerda ficou em estado de choque. Em Portugal, ficámos um pouco mais, tendo em conta as relações históricas dos dois países, a importante comunidade brasileira a residir em Portugal e, em particular, as relações entre a esquerda e os movimentos sociais dos dois países. Nessa altura, Guilherme Boulos, do PSOL, esteve em Portugal e, numa sessão pública no Porto, deu-me uma lição de militância e combatividade. O Boulos que conheci não fez um discurso de lamento, não paralisou na pergunta “como foi possível?”, não estava derrotado. O Boulos que conheci, ainda a vitória do “coiso” estava morna, era um militante de cabeça erguida, consciente das dificuldades, mas absolutamente empenhado nas lutas que era necessário fazer para virar a relação de forças. Hoje é dele que me lembro, porque hoje é dia de levantar a cabeça, respirar fundo, prosseguir e construir as lutas. A minha esperança reside na certeza da justiça das nossas propostas e na capacidade militante e ativista que caracteriza a esquerda. Os tempos são difíceis, mas nunca as dificuldades derrotaram ou fizeram esmorecer a esquerda. A solidariedade, a decência e o socialismo estão, desde ontem, fragilmente representados no Parlamento português, mas na rua, nos sindicatos e nos movimentos sociais a luta está viva e vai continuar.

 

Andrea Peniche is a feminist activist, member of the collective A Coletiva, which participates in organizing the International Feminist Strike in Portugal, and a member of the Left Bloc. She frequently writes for various publications as an author and co-author on issues of feminism and political philosophy.