Era uma vez um país…
Domingo foi dia de eleições legislativas antecipadas em Portugal, umas eleições convocadas na sequência da apresentação e rejeição de uma moção de confiança ao governo de direita de Montenegro (PSD-CDS). A razão de fundo desta moção de confiança teve que ver com a idoneidade legal e ética do primeiro-ministro, que foi apanhado enredado numa teia de interesses e favorecimentos: Montenegro foi ameaçado com a realização de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para averiguar se, de facto, no exercício das suas funções governativas, manteve em funcionamento uma empresa sediada na sua própria casa e se, através dela, recebeu pagamentos de empresas. Em resumo, a queda do governo não teve motivações políticas, mas assentou antes num conflito legal e ético. O que os resultados das eleições de domingo nos mostram é que a falta de compromissos com a lei e a ética não são, em termos eleitorais, razões suficientes para censurar governantes e/ou deputados.
Os resultados
PSD/CDS
(AD) |
PS | CHEGA | IL | Livre | PCP/PEV | Bloco | PAN | |
direita tradicional e direita conservadora | social-democracia | extrema-direita | liberais | esquerda | esquerda | esquerda | animalista | |
Legislativas 2024 | 28%
77 MP |
28%
78 MP |
18.1%
50 MP |
4.9%
8 MP |
3.2%
4MP |
3.2%
4 MP |
4.4%
5 MP |
2%
1 MP |
Legislativas 2025 | 32.1%
86 MP |
23.4%
58 MP |
22.6%
58 MP |
5.5%
9 MP |
4.2%
6 MP |
3%
3 MP |
2%
1 MP |
1.4%
1 MP |
Parlamento Europeu | EPP | S&D | Patriots for Europe | Renew Europe | X | The Left
|
The Left
|
X |
No momento em que escrevo este texto, os resultados eleitorais ainda são provisórios, porque falta contar os votos dos círculos eleitorais da emigração (Europa e Fora da Europa) e atribuir quatro mandatos. Muito provavelmente, estes resultados terão um forte impacto no resultado global eleitoral, não apenas do ponto de vista simbólico, mas também, e sobretudo, do ponto de vista das condições concretas da vida democrática no país. Se a tradição se mantiver, o Chega (extrema-direita) elegerá, pelo menos, mais dois deputados, o que o transformará no segundo partido mais votado (à frente do Partido Socialista), logo, líder da oposição. Este cenário não é uma hipótese meramente teórica, é a realidade mais provável, já que há um ano três destes quatro mandatos foram para a direita (1 para o PSD; 2 para o Chega). Acresce que basta que um desses quatro mandatos que estão por atribuir seja para um dos partidos de direita para que esta consiga a maioria parlamentar de dois terços que lhe permitirá nomear para o Tribunal Constitucional e órgãos que regem a magistratura e o Ministério Público e também, se assim o entender, alterar a Constituição da República.
O triunfo da direita
Ontem, a direita triunfou em Portugal. Apesar de toda a direita ter crescido, os resultados não podem ser lidos da mesma forma.
A coligação de governo (AD – Aliança Democrática), que resulta da coligação entre o (ainda) maior partido da direita portuguesa (PSD) e um pequeno partido da direita conservadora (CDS), venceu as eleições, mas o seu crescimento eleitoral não foi espetacular.
Os resultados da Iniciativa Liberal (IL), que durante toda a campanha eleitoral se apresentou e ofereceu como garantia de governabilidade, também cresceu, mas não o suficiente para conseguir determinar ou condicionar a AD. A AD precisa da IL, mas os deputados e deputadas da IL não são suficientes para garantirem uma maioria parlamentar. A direita amiga de Milei cresce em Portugal, mas fica aquém dos seus objetivos: não tem poder para condicionar, nem será parte do governo.
A direita que verdadeiramente cresceu e venceu foi a extrema-direita, o Chega. Reforçou-se em número de votos e de mandatos parlamentares, colocando o país à beira do abismo democrático. Montenegro, o anterior e simultaneamente futuro primeiro-ministro, garantiu, no mandato passado, que não governaria com a extrema-direita. Renovou esse compromisso durante esta campanha eleitoral. No entanto, apesar de o ter cumprido, fê-lo à custa da disputa da agenda da extrema-direita, chamando-a a si, e, nesse movimento, radicalizou o seu próprio partido, contribuindo extraordinariamente para a normalização fascista em curso. Por exemplo, durante o anterior mandato, em conjunto com o Chega, o governo alterou a Lei de Bases da Saúde, que passou a limitar e impedir o acesso aos serviços públicos de saúde a pessoas migrantes. A questão da imigração é, porventura, o exemplo mais cristalino sobre este processo de radicalização em curso da direita. Durante a campanha eleitoral, o governo ainda em funções, anunciou o seu plano de deportação de imigrantes, numa manobra evidente de disputa pelo eleitorado da extrema-direita. Sabemos que na sua agenda está também a sanha de fazer recuar vários direitos sociais, culturais, políticos e económicos. Esta vitória das direitas é, pois, uma declaração de guerra aos movimentos sociais emancipatórios e às conquistas do Portugal democrático. Trabalhadoras e trabalhadores, feministas, pobres, minorias étnicas e sexuais, pessoas migrantes, pessoas com deficiência, todas e todos estamos na mira das direitas.
O Chega foi fundado em 2019 e tem tido um crescimento extraordinário. Em seis anos, cresceu de 1.3% para 23%. Como noutros países, veio dar voz a um país que sabíamos que existia, mas que vivia escondido, com vergonha e sem expressão eleitoral. Tudo isso mudou e, hoje, a casa da democracia albergará 58 deputados e deputadas fascistas. E se, antes, o Chega implorava por um convite para ir para o governo, hoje o seu horizonte alargou-se e a extrema-direita já sonha em governar sozinha ou em ser o motor de um governo de direita radical.
Este processo de fascização não é novidade. Assistimos, um pouco por toda a Europa, a processos semelhantes. No entanto, continua a ser difícil compreender como é que um partido atravessado por contradições, assente na bazófia populista e na mentira, marcado por escândalos contínuos – deputados acusados e condenados por diversos crimes extraordinários, como violência doméstica, abuso sexual de menores, roubo de malas no aeroporto – cresce em número de votos e em mandatos parlamentares. Há um país capturado pela extrema-direita que precisamos compreender e resgatar, porque esse país zangado tem razões para o estar. Descobrir como substituir o ódio como resposta pela solidariedade é uma das tarefas difíceis que a esquerda tem entre mãos.
A hecatombe da esquerda
Somados, os mandatos dos partidos de esquerda (amplamente considerada – PS, BE, PCP, Livre, PAN) rondam os 30% do parlamento saído destas eleições. À exceção do Livre, todos os partidos de esquerda desceram, apesar de a descida mais acentuada ter sido a do Bloco de Esquerda.
A responsabilidade do Partido Socialista
O Partido Socialista sofreu ontem uma pesadíssima derrota (o seu pior resultado eleitoral desde 1987), que resultou já na demissão do seu secretário-geral (Pedro Nuno Santos). É importante tentar perceber a trajetória que aqui o conduziu. Em 2015, numas eleições legislativas marcadas pelo empobrecimento geral da população imposto pela troika (FMI, CE e BCE) ao país, o Partido Socialista, apesar de não ter ganhado as eleições, conseguiu formar governo, graças ao acordo de apoio parlamentar negociado com o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP). Foi o tempo da chamada Geringonça. Esse acordo, embora só impusesse ação comum em alguns assuntos e excluísse outros, resultou num aumento de salários e pensões e na conquista e alargamento de outros direitos sociais. Nas eleições de 2019, os resultados confirmaram a popularidade da Geringonça: o PS ganhou as eleições e o Bloco de Esquerda e o PCP desceram ligeiramente. No entanto, o Partido Socialista não quis manter o seu compromisso com os partidos de esquerda e decidiu governar sozinho, conduzindo o país a uma nova crise e às eleições de 2022, que ganhou com maioria absoluta. De 2022 a 2024, o PS governou com maioria absoluta e usou-a para rejeitar as propostas dos partidos de esquerda, regressando às medidas tradicionais de redução do investimento público e das restrições financeiras para cumprir as regras europeias sobre défice e despesa públicos. Apesar da maioria absoluta, seguiu-se a desagregação do governo e foram convocadas novas eleições antecipadas para 2024, que resultaram no regresso da direita ao poder (PSD/CDS) e no reforço da extrema-direita (de 12 para 50 deputados e deputadas). Durante dois anos, o PS pôde tudo e fez nada, por isso, nestas eleições, não teve condições de se apresentar – nem ao centro, nem à esquerda – como alternativa. Acresce que em questões fundamentais, como a habitação, as propostas do PS foram coincidentes com as da direita. O PS não apresentou nenhuma medida para resolver no imediato a crise da habitação, recusando-se a secundar a proposta do Bloco de Esquerda de imposição de tetos às rendas, aproximando-se, ao invés, da proposta da direita baseada na construção de habitação num futuro sem data marcada e em medidas ancoradas em benefícios fiscais que já provaram ser irrelevantes, inconsequentes e inúteis no combate a esta crise. Apesar disso, o PS não teve vergonha de apelar ao voto útil da esquerda, um pedido a troco de nada, ancorado apenas na chantagem e na imposição do medo como argumento. O PS falhou ao país e falhou à esquerda.
Esquerda social e esquerda eleitoral: um paradoxo
As campanhas da CDU (coligação do PCP com o PEV – Partido Ecologista “Os Verdes”) e do PAN foram relativamente idênticas a anteriores, não trazendo grande novidade. Pelo contrário, o Bloco de Esquerda partiu para esta campanha com abordagens novas quer ao programa, quer ao eleitorado, baseado no pressuposto de que se os tempos mudaram a forma como os enfrentamos deve mudar também. Tendo por base a análise da experiência do Die Linke, o Bloco de Esquerda construiu uma campanha diferente, baseada no contacto direto com as pessoas (porta a porta), substituindo os clássicos comícios por festas-convívio e investindo os seus militantes históricos na disputa eleitoral. Contra si teve a pressão do tempo, a impossibilidade de maturar todas estas transformações, porque assim o calendário eleitoral o impôs. Apesar de o resultado eleitoral do Bloco ter sido uma hecatombe, a sua campanha foi mobilizadora e, por isso, creio que da aprendizagem resultante dessa experiência nascerá uma renovada forma de militância e de ativismo.
O único partido de esquerda que cresceu significativamente nas últimas duas eleições foi o Livre. Os seus resultados merecem atenção, porque nos colocam perante um debate que, necessariamente, atravessará a esquerda.
O Livre tem cerca de 11 anos e surgiu, construiu-se e constrói-se em torno do seu líder, Rui Tavares, um respeitado historiador que começou o seu percurso político público como candidato independente nas listas do Bloco de Esquerda às eleições Europeias de 2009. Foi eleito eurodeputado, mas rompeu, em 2011, com o Bloco de Esquerda, não devolvendo o mandato ao programa que o elegeu, mantendo-se, por conseguinte, em funções como eurodeputado independente. A rutura com o Bloco implicou também a sua mudança de bancada europarlamentar – do GUE/NGL para os Verdes Europeus (Verdes/ALE). Apesar de o Livre não ter nenhum eurodeputado, faz parte dessa família política e tem representado em Portugal as suas posições, nomeadamente algumas bastante polémicas como a sobre os conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente.
O pendor militarista do partido de Rui Tavares foi uma marca do seu programa eleitoral, apesar de essa escolha ser absolutamente contraditória com a sua proclamação de partido ecologista, a menos que a transição climática que advoga se baseie exclusivamente nos comportamentos individuais privados. O seu programa eleitoral propunha claramente o aumento do investimento em defesa e segurança e o rearmamento e reforço da capacidade militar europeia.
Curiosamente, se analisarmos o percurso do Livre e do Chega conseguimos estabelecer um paralelismo formal entre ambos. São dois partidos que nascem, crescem e se constroem em torno de um homem e, um à direita, outro à esquerda, têm tido ambos uma estratégia semelhante de entrada no poder: o Chega oferece-se ao PSD e o Livre oferece-se ao PS. A campanha do Livre foi toda ela baseada nisso, como, aliás, já tinha sido a anterior. E nenhum dos dois partidos alguma vez esclareceu sob que compromissos estaria disponível para integrar o governo dos partidos que escolheram para chegar ao poder. Apesar de estarem nos antípodas quanto ao seu espectro político, a sua estratégia tem sido semelhante.
Mas o Livre cresceu e o resto da esquerda não. O que explica que uma esquerda urbana, de classe média e pouco ou nada enraizada socialmente tenha conseguido mobilizar até ao voto eleitores e eleitoras de esquerda? O que explica que os partidos com enraizamento social e político – nos sindicatos e nos movimentos sociais – tenham emagrecido e o partido das proclamações e do poder simbólico tenha crescido? Este será, certamente, um debate que vai ocupar a esquerda nos próximos tempos.
O futuro: “Por cada grunho, um punho!”
A necessidade de estabilidade com que a direita chantageou o país, apesar do seu crescimento, não é tangível. A coligação da AD (PSD/CDS) não conseguiu maioria absoluta e o seu parceiro mais evidente, a IL, não é suficiente para garantir a maioria parlamentar. Acresce que o Chega, que se mostrou sempre disponível para casar com a Carochinha AD, apesar do cordão sanitário imposto por Montenegro, neste momento, deixou de estar interessado nesse casamento, porque o resultado das eleições lhe permite sonhar chegar ao governo pelo próprio pé. Não sabemos como resolverá o PS a sua crise, que líder escolherá e que estratégia gizará: o bloco central é uma possibilidade, dada a base social de apoio do partido e o peso da derrota eleitoral sob uma estratégia de recusa de acordos com a direita. Caso o PS, apesar da derrota, mantenha essa estratégia, a estabilidade parlamentar vai, no imediato, ser forjada com entendimentos à direita, o que nos permite antever um cenário de aceleração da selvajaria económica, de ataque aos serviços públicos e ao Estado social, de privatização do que sobra de setores estratégicos da economia e, possivelmente, de extensão a outros setores sociais e institucionais. Mas se isto são previsões, uma coisa podemos já tomar como certa: as vidas mais vulneráveis estão sob ataque. A vida vai ficar muito mais difícil para os trabalhadores e as trabalhadoras, seja nos novos setores precarizados, como as plataformas digitais, seja nos setores tradicionais – o PSD prometeu, durante a campanha, mexer na Lei da Greve -, para as mulheres, as pessoas LGBTQIA+, as comunidades ciganas, as pessoas com deficiência, as e os imigrantes, as e os pobres, em suma, para todas as pessoas que não tiveram o “mérito” de nascer perfeitinhas, na família certa, com a cor de pele adequada e a orientação sexual canónica e também para todas aquelas que se recusam a ser formatadas num qualquer estereótipo.
A responsabilidade da esquerda é, por isso, imensa, mas isso não nos deve limitar nem assustar. Lembremo-nos da nossa história, do nosso património, lembremo-nos de onde vimos. À esquerda, a política sempre se fez com militância e entrega. E, apesar da presença da esquerda no parlamento ter sofrido um grande revés, neste país a esquerda continua viva, militante e combativa.
Era bom que a esquerda conversasse e se entendesse, que pensasse conjuntamente, que fizesse alianças em torno de questões concretas e cerrasse fileiras. Isso exige maturidade, empenho e respeito, três condições perfeitamente ao alcance da esquerda comprometida com as lutas sociais.
Termino com uma nota pessoal. Quando Bolsonaro ganhou as eleições no Brasil, em 2018, toda a esquerda ficou em estado de choque. Em Portugal, ficámos um pouco mais, tendo em conta as relações históricas dos dois países, a importante comunidade brasileira a residir em Portugal e, em particular, as relações entre a esquerda e os movimentos sociais dos dois países. Nessa altura, Guilherme Boulos, do PSOL, esteve em Portugal e, numa sessão pública no Porto, deu-me uma lição de militância e combatividade. O Boulos que conheci não fez um discurso de lamento, não paralisou na pergunta “como foi possível?”, não estava derrotado. O Boulos que conheci, ainda a vitória do “coiso” estava morna, era um militante de cabeça erguida, consciente das dificuldades, mas absolutamente empenhado nas lutas que era necessário fazer para virar a relação de forças. Hoje é dele que me lembro, porque hoje é dia de levantar a cabeça, respirar fundo, prosseguir e construir as lutas. A minha esperança reside na certeza da justiça das nossas propostas e na capacidade militante e ativista que caracteriza a esquerda. Os tempos são difíceis, mas nunca as dificuldades derrotaram ou fizeram esmorecer a esquerda. A solidariedade, a decência e o socialismo estão, desde ontem, fragilmente representados no Parlamento português, mas na rua, nos sindicatos e nos movimentos sociais a luta está viva e vai continuar.
Andrea Peniche is a feminist activist, member of the collective A Coletiva, which participates in organizing the International Feminist Strike in Portugal, and a member of the Left Bloc. She frequently writes for various publications as an author and co-author on issues of feminism and political philosophy.